Da vez que senti que fracassei com meus alunos
Em meus quase 20 anos de sala de aula, são poucas as frases de impacto que me causam algum impacto. No entanto, ao ler a seguinte declaração do economista Ricardo Aronskind, me deparei com a áspera realidade do pensar capitalista que nos consome:
"Se matar para roubar um celular é errado, mas matar para recuperar um celular é aceitável, o que é proibido não é matar, e sim violar a propriedade privada. O sagrado não é a vida, é a propriedade".
Na época, imanginei que tal reflexão não poderia deixar de passar em uma das minhas turmas dado o incômodo provocado pelas palavras do economista. Tive certeza de que a minha aula da semana estava garantida. Iria causar aquela comoção. Com certeza sentiriam vergonha do egoísmo, do narcisismo que carregam. Ela renderia muitos minutos de um encontro com a consciência de cada um. Afinal, o que vale mais? Uma vida ou um maldito de um aparelho celular que pode ser comprado em VINTE E QUATRO parcelas e que em gigantesca maioria das vezes é usado APENAS para frivolidades? A telinha brilhante, hoje, um prolongamento do corpo das pessoas, o espelho de cada dia, o memory card da alma, um órgão extra implatado, um terceiro participante da relação sexual.
Na tentativa de fazê-los pensar e tentar outros e possíveis pontos de vista, fui chamado de "defensor de bandito". "Ora essa, roubar um celular. Onde já se viu? Tem que morrer mesmo!". Passei os olhos no relógio para verificar quanto tempo ainda tinha de aula. Olhei para os rostos diante de mim. Recém estavam deixando de ser crianças, ainda tinham muito a aprender da vida. Tudo bem. Procurei algum olhar de incômodo, de sensibilidade. Zero. Curiosamente, alguns deles frequentadores de igrejas cristãs. Como é o Jesus que ensinam por lá? Talvez um Jesus que apedrejaria a mulher adúltera e condenasse ao inferno o sujeito crucificado ao lado dele.
Como ficou fácil chamar o outro de vagabundo. As pessoinhas são largadas na porta da escola em carros com ar condicionado, faltam à aula quando está frio e chovendo. Durante a pandemia, estando em casa, não fizeram as atividades online, deveriam estar ocupadíssimos com algo muito importante. Os medíocres e os péssimos são empurrados à aprovação por coordenação e professores com chances e mais chances. Quem não as teve é "vagabundo".
Aquela aula, foi a aula que disse chega. Chega daquela turma, chega daquela escola.
Senti que fracassei, que aula nenhuma nunca os tocou, nunca causou nada, diante de tanta insensibilidade. Senti que cada insistência de meus colegas em exigir tema, em cada chamada de atenção das monitoras do corredor, que cada ligação da coordenação para contatar os pais, tudo isso havia sido uma pura perda de tempo. Era irremediável. Filhos de uma geração que vê na Educação apenas o progresso financeiro e a chance de poder se sentir mais que o outro por causa da profissão ou da empresa lucrativa.
Mas é assim que professores como eu fazem. Professores assim como eu não são bons de briga. Não vão tirar satisfação de pais, até porque os únicos que comparecem às reuniões são aqueles que não têm motivos para ir (pais dos bons alunos, no caso). Professores assim como eu não vão discutir com esboços de adultos incompletos, ausentes, vazios.
Professores assim como eu, pensam, refletem e usam as palavras a seu favor.
Professores assim como eu aprendem com alguns alunos e seus pais como não devem criar seus filhos.
Professores assim como eu buscam outros lugares para trabalhar.
Lugar onde querem ser ouvidos.
O bom é que ainda existem esses lugares.
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